Campanha pede visita virtual a parentes com covid-19
Jornalista que perdeu a mãe para o coronavírus e precisou lutar pela despedida lança abaixo-assinado para que todos tenham o mesmo direito
Por: Mainary Nascimento
Imagina levar um ente querido ao hospital e não receber mais notícias. Iniciar uma saga por informações e dias depois descobrir que ele faleceu por coronavírus e será enterrado em caixão lacrado. A história da jornalista Silvana Andrade, de 56 anos, e de sua mãe Maria Albani, de 93, só não terminou assim porque a filha travou uma batalha para garantir o direito humanitário da última despedida. O adeus durou 15 minutos através da tela de um celular.
Faz pouco mais de duas semanas que Silvana começou a “elaborar” o luto da perda da mãe. O momento, segundo conta, só não tem sido mais sofrido por dois motivos: o primeiro porque ela pôde dizer suas últimas palavras à dona Maria Albani, e o segundo porque está transformando a dor em luta. Uma luta para que nenhuma pessoa tenha que passar pelo trauma de sepultar um parente, morto em decorrência da covid-19, sem se despedir.
“Estaria devastada se não tivesse feito a ligação. Para mim, foi fundamental”, comenta a jornalista sobre o último contato a distância que teve com a mãe. Depois de todas as dificuldades que enfrentou para fazer a videochamada, Silvana passou a buscar formas para que a visita e a despedida virtual sejam institucionalizadas nos hospitais. Os primeiros passos foram sugerir um projeto de lei e lançar um abaixo-assinado para reunir apoio e pressão.

“Eu fiz tudo o que estava ao meu alcance. Na verdade, para mim, a cura de tudo isso é fazer por todos. Não era só sobre mim e minha mãe apenas, é sobre a humanidade”, destaca. O apelo da jornalista foi ouvido pelo deputado federal Célio Studart (PV-CE). O parlamentar se sensibilizou pela causa e rapidamente elaborou e apresentou o Projeto de Lei 2136/2020, que dispõe sobre a visita virtual de familiares a pacientes internados com a covid-19.
O drama das milhares de pessoas que estão perdendo seus entes para o novo coronavírus também foi “abraçado” pelo grupo “Vítima Unidas”, fundado pela estilista e escritora Vana Lopes, que se uniu a Silvana na abertura do abaixo-assinado pelo direito à despedida virtual. A petição, lançada na plataforma Change.org há pouco mais de uma semana, já recebeu o apoio de quase 25 mil pessoas, que reconhecem o ato humanitário.
“Eu não consigo ver que estou fazendo nada de especial, eu estou pedindo por uma coisa que já deveria ter sido vista, pensada e implantada”, comenta Silvana. “Os hospitais precisam mudar, humanizar cada vez mais as relações. Tudo é novo, mas no novo a gente inventa e reinventa. Tem que ser algo institucionalizado, porque se não for as pessoas com menos poder de pressão, as mais pobres, mais simples, sequer vão saber que têm esse direito”, completa.
A jornalista enfatiza que a medida precisa ser regulamentada para que um direito tão fundamental e humanitário não seja confundido com um “favor”, o que constrangeria os familiares de pedi-lo. “Foi uma médica e um médico que fizeram a videochamada como um ‘favor’. Não tive como ‘direito’. Mas não tem que ser favor, tem que ser algo institucionalizado”.
15 minutos de despedida

Depois de passar por algumas cirurgias no fêmur, dona Maria Albani internou-se para tratar de uma infecção urinária quando o marido, companheiro dos últimos 70 anos, foi levado ao mesmo hospital e faleceu depois de uma broncoaspiração. Ela só soube da morte do esposo 15 dias depois. Teve alta e foi para casa. Mas logo os primeiros sintomas da covid-19, muito provavelmente contraída durante a internação, começaram a aparecer.
Ainda em luto pela morte do pai, Silvana retornou com a mãe a um hospital particular, que tem atendimento humanizado, em Recife (PE). Dias depois, a saúde da idosa começou a se agravar e ela foi confirmada com o novo coronavírus, conforme atestou exame. Depois de dois dias sem conseguir notícias da mãe, Silvana passou a insistir nas ligações ao hospital.
“Todo santo dia eu ligava. Se você não ficar em cima, não tem notícias. Há relatos de pessoas que o pai ou a mãe estão internados e não conseguem ter notícias”, conta a jornalista, já que os hospitais não costumam passar informações de pacientes por telefone. A saga de Silvana começou no dia 16 de abril, quando em uma das ligações uma enfermeira lhe disse que não seria possível entrar com um celular na UTI para fazer a videochamada.

“Eu disse que iria até as últimas instâncias para conseguir. Desliguei e desabei num choro tão grande que, de verdade, sentia a dor de todas as pessoas que passam por essa angústia”, narra. Em seguida, Silvana procurou o secretário de saúde, a imprensa e uma vereadora até que conseguiu realizar uma chamada de poucos minutos. “Não era sobre mim, no momento em que ela [a enfermeira] recusou, era uma luta para todos”, afirma.
Depois deste primeiro contato, a jornalista fez mais uma videochamada e a última que durou 15 minutos. Sua mãe estava sedada e entubada, mas Silvana acredita que de alguma forma, em algum nível de consciência, ela recebeu o conforto de ouvir a voz da filha.
“Este momento foi fundamental porque eu pude ver a minha mãe. Eu chorei e falei tudo o que queria, que ela era a melhor mãe, que não tinha nada para reclamar dela. Disse o quanto eu a amava, o quanto eu gostaria que nada daquilo estivesse acontecendo, e que se ela tivesse que ir, que fosse em paz”. Depois de 36 horas, dona Maria Albani faleceu.
A batalha de Silvana fez com que o Governo do Estado de Pernambuco criasse o programa “visita.com”, implementando em alguns hospitais, inclusive na UTI, a prática da videoconferência entre pacientes e familiares. O Ministério Público de Pernambuco (MP/PE) também se manifestou favoravelmente à visita virtual. “A pandemia comunitária basta em si mesma, prescindindo de qualquer circunstância pior do que já é”, destaca a recomendação.
Mais que um direito, justiça

Vana Lopes, fundadora do grupo “Vítima Unidas”, que lançou o abaixo-assinado em conjunto com a jornalista, entende bem sobre justiça. Ela foi uma das vítimas do ex-médico Roger Abdelmassih e criou o coletivo de acolhimento, apoio e orientação a vítimas de abuso sexual e estupro em 2011, depois que Abdelmassih fugiu do país. Quando soube da batalha de Silvana, decidiu imediatamente abraçar a causa, sugerindo a abertura da petição.
Para Vana, a visita e a despedida virtual de familiares com coronavírus vai além do direito, é a garantia da justiça. “Nosso dever é lutar pelos nossos direitos amplos e irrestritos, quando direitos entram em conflito com justiça, nós precisamos nos mobilizar para obter a justiça justa e já! Neste caso é ‘já’, pois desde o dia que começamos a nos mobilizar já morreram 2 mil pessoas que não se despediram”, pondera a estilista e escritora.
A apoiadora da causa de Silvana e das milhares de famílias vítimas da covid-19 mostra-se extremamente solidária à dor dessas pessoas, considerando “injusto” o Estado não garantir esse adeus. “Somos todos nós que estamos em luto. Eu me sinto como se tivesse caindo um avião, dois, três, quatro, até 10 aviões por dia. Meu coração fica em frangalhos, imaginando a dor de ambos, os que morreram e os que ficam e não podem se despedir”.
Para Vana, o abaixo-assinado é um instrumento “muito bom”, pois mostra e impõe o desejo da sociedade. Da mesma forma, Silvana acredita que a petição, que também é apoiada pela superintendente do Instituto Maria da Penha, promotores e procuradores de justiça, bem como atrizes, médicos e ativistas, amplifica o alcance da causa. “O abaixo-assinado é um instrumento que todo mundo deveria usar pelo alcance, amplificação do apelo e porque vai unindo, criando elos e fazendo uma grande corrente para o bem e transformação”, fala Silvana.
A petição segue aberta e pressionando a aprovação do projeto de lei. O abaixo-assinado faz parte de um movimento de enfrentamento ao coronavírus, lançado pela Change.org para dar mais visibilidade às campanhas ligadas à pandemia. Nesta segunda-feira (11), o deputado Célio Studart apresentou um requerimento para votação em urgência do PL.
“O projeto de lei é importante porque não tem custo para o Estado. Se não aprovar é total desumanidade”, afirma Vana. “A família toda entra em um luto inacabado, que depois pode levar ao suicídio. Para quem fica sem se despedir, será sempre um luto eternizado para um estado crônico que paralisa a pessoa. A ruptura sem o bálsamo da despedida nos leva a um sofrimento interior, como um dilaceramento da alma. Essa epidemia propiciou um sofrimento maior: não há despedida, não há corpo. Justiça precisa ser feita e rápido!”, clama.
Texto publicado também no HuffPost.

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